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Acerca
O que dizem de mim:

“Carta Aberta a Pedro” 

 

Pedro, 


Pedes-me um texto para o teu site. 
Encontro-me em Paris e não sou crítico de arte, mas sim teu amigo; por isso, urna carta aberta parece-me a mim a forma mais simples e mais autêntica para apresentar o teu trabalho ao público português.
Pedro, quero exprimir-te aqui a surpresa, a gratidão e a admiração que me provocou a descoberta da tua criação.
A pintura, segundo o que vi durante a minha estadia de um ano em Portugal e o que tenho visto em Paris desde há já dez anos, é muito fastidiosa (insípida). Com raras excepções. Os pintores tornaram-se pessoas muito respeitáveis e muito inteligentes. Abateu-se sobre o mundo da pintura um estilo de um academismo enfático, embora mesmo e, sobretudo, esse novo academismo se vanglorie de ser de “avant-garde”.
A praga (a calamidade) do intelectualismo e a praga do decorativo vão exercendo as suas sevícias. Portugal não escapou a esta domesticação da arte pelo intelecto e pela estética. Quando descobri – duma só vez! –, todas as tuas pinturas, foi grande o meu regozijo. “Até que enfim, alguém que pinta de INSTINTO!”, pensei. “Até que enfim, alguém que pinta LIVREMENTE, tal como sente!”, pensei também. E pensei mais ainda:
“Até que enfim, um pintor PLURAL!”.
Falta-me aqui espaço para dizer tudo o que me vai no coração: a inocência da tua pintura; o seu calor; o seu humor; a sua opulência; a sua profundidade; o seu mistério...
Mencionarei, pois, o que fez essencialmente o meu regozijo: a multiplicidade.
Eu, pintor, senti a forte impressão de ter encontrado um irmão na pintura. Poderíamos dividir, “grosso modo” os pintores em duas categorias: os que encontram urna via que aprofundam sem descanso (na melhor das hipóteses) ou se repetem incansavelmente (na pior) e os que exploram todas as vias, desbravam incessantemente.
Tu fazes parte, evidentemente, do segundo grupo.
Em ti existem cem pinturas; existem cem assuntos; existem cem estilos; existem cem formas.
Penso que a variedade é, para ti, urna espécie de religião: e isso não é um vão divertimento, mas sim uma necessidade vital, uma exigência do teu próprio ser, que tem vários olhos, várias maneiras de ver, vários corações, vários cérebros e é feito de um “eu” múltiplo e variado. Tu dás a palavra a todos os seres que vivem em ti, cada pintura oferece hospitalidade a cada um dos teus outros “eu”, cada tela exprime uma faceta da tua personalidade colorida, furta-cores, cada obra é urna aventura conduzida aos confins ainda virgens de ti próprio, em direcção a urna “Índia interior” da tua alma (neste aspecto a tua pintura parece-me eminentemente portuguesa), e todas estas viagens em que mais parecem visionárias, todos estes percursos (“trips”) são simultaneamente técnicos (tu experimentas tudo), formais (tu esquadrinhas todas as linguagens), e espirituais. Para mim, os espíritos estão contigo. E vejo nesta busca delirante das formas e das metamorfoses, não a fuga de um eu que não se encontrou, mas, bem pelo contrário, uma tentativa de cantar a vida, a vida toda - o desejo de transformar a vida em visões.
Ora a vida é polifonia; esta polifonia da vida, que é um coro de todas as vozes, a tua pintura fá-Ia ouvir, com todas as suas consonâncias e assonâncias. A tua arte intensa e variada é a ilustração viva de dois dos mais belos preceitos de Paul Kee:
“Mover-se tanto quanto a imensa natureza” e “Descer até ao íntimo da forma”.
Lembro-me agora que aquele que, depois de Rirnbaud: “O meu eu é o outro”, levou mais longe esta multiplicação da personalidade, foi um Português, chamado Fernando Pessoa:

“Multipliquei-me para me provar,
Para provar-me a mim mesmo, tive que provar tudo..”

“Cada um de nós é múltiplo em si próprio, é numeroso, é uma proliferação de si-mesmo”, escrevia ele. 
Que tu és um dos filhos espirituais desse artista-Proteu, no campo da pintura, disso não tenho eu qualquer dúvida.
  Mas o ser humano, ávido de unidade, tolera mal os que tentam viver na sua arte essa multiplicidade, essa profusão da natureza e, consequentemente, da natureza humana. 
A beleza (tem que ser dita esta palavra) dos teus quadros vai conquistar a adesão, o entusiasmo mesmo, estou convencido; e quando à beleza se une a diversidade do vivo, a arte dispensa todo e qualquer discurso: por isso, o que faço aqui é apenas um convite a ver a tua obra.
Espero de todo o coração que os espectadores dos teus quadros tenham, para ver, a mesma liberdade, a mesma coragem que tu demonstraste para dar a ver. Quanto a ti, seja qual for o acolhimento recebido, a ti que eu considero como meu irmão português na pintura, só te desejo que continues a pintar cada vez mais, só te desejo que continues este fado de pintar que é o teu.

Simon. (Artista, Pintor, Escritor Francês)

(http://www.simon-artiste-peintre.com)

 


 

PEDRO O LOUCO - O ENCONTRO DE UM OUTRO


É uma festa o simples facto de encontrar um outro que seja verdadeiramente um OUTRO. Passamos a vida a encontrar semelhantes nossos, o que tranquiliza, mas nada adianta. É através do dissemelhante que avançamos. Feliz aquele que ultrapassa o primeiro medo - a verdadeira diferença assusta - e se dirige ao OUTRO, para o conhecer, e conhecer-se.
Ontem, quando encontrei Pedro Garcia Fernandes, aliás, Pedro o Louco, grande foi o meu regozijo, pois esse homem é tão diferente (outro) do ponto de vista artístico como é diferente (outro) do ponto de vista humano.
Enfim, um artista LOUCO, pensei.
(Os artistas profissionais em Portugal são pessoas muito sensatas).
A minha mente cantou e dançou e regozijei-me interiormente.
O Porto é uma cidade que não confia facilmente os segredos dissimulados nos sedimentos das suas ruas e das suas casas; foram necessários meses para conseguir aproximar-me de tal pessoa. Tinha ouvido falar dele. Vendi ao pai e ao irmão alguns desenhos. Um encontro tinha sido organizado. Ele não apareceu. Não insisti. No entanto, eu procurava-o, perseguia-o, sem me aperceber.


UM PINTOR AMADOR?


Pedro G.F. 39 anos de idade, filho e irmão de cônsules (Républica de Malta e Colômbia, respectivamente), pinta. Nunca expôs, nunca vendeu, nem procurou fazê-lo. Mas é um PINTOR com certeza, ponho as minhas mãos no fogo. Começou a pintar aos 29 anos, frequentou um curso na Cooperativa ÁRVORE durante um ano; pintou desde então obstinadamente; não procurou nem fama, nem lucro. Numa palavra, um pintor armador. 
Mas atenção: um pintor amador (não o foi Gauguin durante muito tempo?) pode valer muito mais do que muitos amadores - e não menos do que muitos profissionais, ou até muito mais.
As pessoas mais chegadas não têm grande consideração artística por ele; um amador um pouco louco que faz “traços e manchas’ e, de vez em quando, coisas belas”…
Que me importa, se eu tenho a certeza de ter encontrado um pintor, um pintor irmão ainda que estrangeiro, e da espécie mais necessária : não apenas um pintor que faz ‘coisas belas’, Mas também um artista livre, e não só um artista livre, mas um artista de uma espécie rara, dos que produzem beleza liberta (ao ponto, aqui, de parecer desenfreada), isto é, um artista libertador. Como Picasso, Dali, Dubuffet ou o meu pai! Em todo o caso, o encontro com Pedro o Louco libertou em mim uma onda de coragem, de interrogações e de entusiasmo.

 

PEDRO, RETRATO DE CORPO INTEIRO


  Vi-o chegar ao longe: magro, janota, estranho. Estranho de imediato, e não escondendo a sua estranheza. Aproximava-se. Sim, magro como um gato do Porto, não muito "português" (no sentido habitual daqui: atarracado e barrigudo) resumidamente! Magro, mas como um pincel de pêlo de marta e não como uma esferográfica Bic: duma magreza flexível, viva, nervosa, a magreza daqueles que sentem profundamente. 
“Quando nasci, não me davam hipóteses de sobrevivência; era raquítico, chamavam-me lâmpada fundida. Sobrevivi”
Bigode, muito fino como o de Salvador Dali. 
Usava um bastão na mão. Há também a mão: ossuda, vibrante; longos dedos que vêm de longe e que irão longe. Agora, aperto-lhe a mão, apresentam-nos. Que mão! 
Estas referências a pintura de ontem, ao cinema de outrora, este bastão, traem o anacronismo da personagem, e o seu aspecto cosmopolita. 
Há nele o chique (a elegância, a distinção) inglês, o garbo espanhol.
Ora o homem tem modos de Português: caloroso à vista, simples, nada vaidoso. O preconceito diz que os magros são frios como pedras de gelo. O magro em questão é caloroso como um archote. Ao fim de alguns minutos, tratávamo-nos por ‘tu’. Simpatia. Duas cervejas! 
Conta-me de um desastre de automóvel, cara partida, a língua saindo por um buraco entre os olhos, e a cirurgia plástica com grandes despesas; o seu desejo de ser piloto de avião durante a guerra de Angola, as tentativas desesperadas do pai para o dissuadir - “Eu quero ser piloto!”, e as suas intervenções junto das autoridades militares foram em vão, ‘ia partir, quando subitamente, adoeci gravemente’...
Mas que interessa a biografia?
Estou aqui para falar de pintura.
O Pedro nunca tinha vendido, tinha as suas pinturas em casa. 


A CASA do PEDRO


Entremos na casa, se quiserem.
Trata-se da mais alta construção do Muro dos Bacalhoeiros, no cais da Ribeira, Porto. Do lado de fora, contam-se seis andares. Do interior, reconhecem-se oito. Na placa: ‘Consulado da Colômbia”. Eis-nos no local. Cave: uma galeria de arte (Petrus) que nunca tinha sido inaugurada. (Pedro tem medo). Rés do chão, 1º e 2º andares: escritórios do Consulado. Uma escada de caracol, de latão leve, excêntrica nesta casa de granito, leva-nos lá a cima. 
Quarto andar: habitação do Pedro (suite). 
Quinto andar: sala de estar e cozinha.
Sexto andar: águas-furtadas/estúdio e varanda sobre o Douro.
De alto a baixo, pinturas penduradas nas paredes de pedra.
Que casa!
As galerias de arte, brancas como comprimidos de aspirina, revestidas de obras, a maior parte das vezes neurasténicas, onde o acolhimento é geralmente gélido, como não opor a casa de Pedro o Louco, com o seu calor, o acolhimento com cerveja e tudo a condizer. 
É uma residência onde as obras e as coisas vivem em bons termos, numa alegre igualdade: dá a sensação de que as primeiras não olham sobranceiramente as segundas e que a populaça destas não se insurge contra os privilégios das outras. 
Bastões e bengalas de colecção estão numa peça comum com os tubos de tinta e não os furam. 
Nas paredes, as espingardas são vizinhas dos quadros e não lhes dão tiros.
É costume que num sítio se ponha, no lugar de honra, ou o objecto de arte - nos antiquários e na maior parte das casas - ou a obra de arte, - nos museus, galerias, e algumas casas... Quando prevalece o “bibelot”, as obras de arte de valor, se as houver, ficam como perdidas no meio de tal amontoado, relegadas ao nível de papel de parede. 
Enfim, uma arte verdadeira, a de saber associar objectos de arte e obras de arte.
A casa-museu de Pedro o Louco não faz caso dessa rivalidade, e a convivialidade das obras e das coisas testemunha em favor daquele que ali vive e da sua convivialidade com elas e com outrem.
Apercebo-me de que a habitação de Pedro o Louco é uma parente modesta da casa-museu de Dali em Figueras, mas uma parente simpática: tanto quanto me provocou náuseas a residência exagerada de Dali - por o seu principal habitante ter sido, sobretudo, a megalomania - tanto assim a visita a casa de Pedro me pareceu calorosa, alegre, como a visita a uma escola infantil, onde os brinquedos de madeira pintada estão lado a lado com garatujas fabulosas.
Contudo, apesar desta equiparência feliz das coisas e das pinturas, ê das últimas que eu quero falar. 

PINTURAS

O génio da ruptura


  Eu não pressentia nada de bom: borrões, como vi tantos. A primeira pintura reforçou a minha apreensão: é uma obra larval. A segunda, a cinquenta centímetros de distância, uma pintura lagarta: já um animal mais evoluído, provido de cores, patas, anéis e, portanto, que vai mais longe. A terceira é fantástica: uma borboleta, esplêndido aparato de coloridos, uma obra que levantou voo. Terei que falar do quarto quadro em termos ainda mais elogiosos? Não: não há evolução de uma borboleta bela para qualquer borboleta superior, mas salta de borboleta para pedra preciosa, de pedra preciosa para vulgar seixo, de seixo para nuvem e, sem fim, metamorfoses estonteantes: passar de uma pintura a outra ê visitar uma colecção extravagante: duma borboleta exótica a um montículo de terra, deste a uma espantosa concha, dali a um animal empalhado, duma caravela a uma casca de noz, e duma coisa a outra totalmente diferente. Que me seja permitido, ao menos, tirar desta metáfora o esboço de um estudo crítico: o método de Pedro (se é que há método) é o da mudança constante. Esta mudança é, entendamo-nos, a do seu cérebro. Tais transformações, tão habituais nas fadas, Carabossa ou Melusina, são menos frequentes nos artistas: aquele que pinta barcos, obstina-se a pintar barcos; é raro que comece a pintar aviões. E é por isso que a variedade de assuntos, estilos e formas na arte de Pedro, deslumbra. Se o génio humano, relativamente ao dos animais, repousa no infinito destas metamorfoses mentais, então Pedro, não é de certeza um atrasado mental. Lembro-me do poema de Michaux (intitulado “Mais Mudanças, no ‘Propriedades Minhas”), onde o narrador passa por todas as formas possíveis e imagináveis, num pandemónio de pavores. O cérebro de Pedro deu vida a este mundo proteiforme. Vejo aqui um verdadeiro génio de ruptura. A noção de transição, donde provém em geral a criação (as passagens de uma fase a outra realizam-se por graus), não se aplica no presente caso.
Em poucas palavras: não é impossível que este indivíduo seja um génio.
É também muito provável que eu me engane completamente, e que Pedro seja um Proteu, tão exuberante quanto efémero, em que os furta-cores das escamas brilhando desatinadas me tenham encandeado... Algo, no decorrer deste passeio contemplativo, desafia a razão. Quem não soubesse que todas estas pinturas são obras do mesmo artista, juraria que pelo menos dez autores estão ali representados, e diria: “É uma exposição colectiva!”

- "Não, é tudo obra minha!"

- "Quer que eu acredite que fez tudo isto sozinho?"...

Em certo sentido, ter-se-á mesmo que concluir que se trata efectivamente de uma exposição colectiva DELE PRÓPRIO! E, se a criação de Pedro desafia a simples razão que postula a unidade da personalidade, o desafio conduz também a “razão artística”, que solicita a unidade de estilo. A regra estabelecida determina que todo o artista digno deste nome encontre o seu estilo e imprima sua marca de fabrico em todas as suas obras, qualquer que seja o número e variedade delas. Então, porque é que os críticos (e nós todos, em boa verdade) não escondem a sua satisfação quando chega o momento de dizerem: “Encontrou o seu estilo?” Será que não existe nesta satisfação uma espécie de alívio: o artista trocou o múltiplo pelo uno: este já não nos escapa! E dizem: é um Picasso; tranquiliza-nos que Picasso-a-variedade, seja atribuível a este uno. Ora Picasso é tudo menos uno e indivisível. Mas, enfim, esta regra, inteiramente louvável, da necessidade de o artista inventar a sua linguagem, será ela inviolável? Será ela ainda fundada, hoje, nesta nova Idade Media, em que as imagens pululam, anónimas? Na Idade Media, sentiríamos a necessidade de dizer perante uma estátua da Virgem: “E um...”? A interrogação não se punha: apenas a Virgem contava. A doença moderna do NOME, e este culto dos Ídolos da arte (Ver o fenómeno Van Gogh), não estarão a falsificar a relação viva do espectador com a obra, a única que é verdadeiramente importante? 

Voltemos a casa de Pedro.
Trinta pinturas.
Trinta temas.
Trinta estilos.
Abundância.


Ser um só uma prisão
Ser só eu é não ser
Fernando Pessoa

 

PINTURAS DO PEDRO


Existe um quadro “feito a rolo”; as faixas de cores vivas, evocando as fotografias dos manuais de biologia, ou certas fitas coloridas dos vídeos abstractos. Pergunto-lhe o título. Chama-se VIDA. Como por casualidade.

Liberdade de tema.

 


Há um quadro apresentando barras verticais cor-de-rosa plantadas num suporte de alumínio. Prédios? Espigas de trigo? Simples barras de cores? Talvez. Por cima destas barras uma profusão de manchas vivas. Pode ser um fogo de artifício, flores que desabrocham manchas de cores vivas, talvez. Uma certa tendência do pensamento moderno está ali presente: nem isto nem aquilo, mas “talvez coisas”: um Manhattan, quiçá, um campo de trigo, provavelmente, ou coisas híbridas: um fogo de artifício, porventura (Isto chama-se: POLUIÇÃO).

Liberdade de visão.

 

 

Há um Cristo na cruz, quadro picotado com um amontoado de pontos dourados Um ícone novo e justo: porque aqui a pintura inteira está cravejada.

Liberdade de interpretação.

 


Há um quadro intitulado URSO, que mostra um urso em primeiro plano. Um simpático ursinho, não de peluche, mas de pintura. Para adultos. Para pendurar à cabeceira da cama.

Liberdade de ingenuidade.

 


Há um quadro de traços vermelhos-vinho-do-Porto, cinzentos e brancos, verticais, que sugere uma vista da Ribeira. “Como é que isso se chama, Pedro? –“O INFERNO DO PEDRO”. Foi feito a espátula.

Liberdade de título.

 


Há um CHEFE ÍNDIO, (castanho Van Dick), semelhante a uma máscara de argila aplicada no suporte (Os suportes, esclareço, são placas de offset em alumínio). 

Liberdade de tema.

 


  Há uma deflagração branca numa noite cerrada, castanha escura, com uma forma vagamente triangular. Gostaríamos de chamar a este quadro: “Cataclismo”, ou “Pesadelo”, ou “Noite espantosamente branca”, ou “Leucemia”, de tal forma ele é dramático. Estereótipos! “Como se chama este quadro, Pedro?” - “BARCO À VELA”. 
Se pensar não bastava... mas também vaguear...

Liberdade de imaginar.

 


Há um automóvel; digamos um carro. Uma espécie de Volkswagen que parecia tão grande como um camião de cinco toneladas. E divertido; engraçado mesmo. Cresce, aumenta, ronca, aquece... e desliza, lamentavelmente, na lama. “Para mim”, diz Pedro, “chama-se BUGGY’. Mas se as pessoas lhe quiserem chamar MONSTRO, não vejo qualquer inconveniente”.

Liberdade do espectador.

 


Há um homem com membros estranhamente compridos, tipo Marsupilarni. Mas vejamos bem: quantos membros tem ele? cinco? que curioso. Como é possível? Vejamos melhor: aí está! A terceira perna não falta! Também está de pé! E é tão comprida e grande como as outras, incrível... Oh! Que sexo considerável! E um homem em ânsia sexual, é mesmo isso! E é bonito. Justo: todos os membros estão erectos. Está certo! “Chamo-lhe AUDÁCIA. Não sei se compreendes como é ousado, na minha posição de filho e irmão de cônsul, neste tipo de família, realizar um auto-retrato em erecção?” Que encantadora ingenuidade! Conhecerá ele Egon Schiele? Mas eu explico: esta sociedade portuguesa em 1990, não é a sociedade “europeia” de 1990:
há 43 anos de salazarismo, uma Igreja ainda influente, e a representação do nu masculino é aqui proibida. Por isso, tal pintura constitui uma pequena blasfémia. Contudo, o quadro, apesar do tema, não apresenta nada de chocante; nenhuma provocação. E erótico naturalmente, da mesma maneira que não é erótico naturalmente um sexo que pende e oscila. É documentário ou biologia, em versão burlesca.

Liberdade de ironizar.

 


Há um quadro pequeno, que representa duas árvores.

 

 

Uma com abundância de verde, outra de vermelho. “O meu irmão só vê duas árvores mal desenhadas; bem, está no seu direito. São apenas duas árvores, está claro. Ele tem razão, sem dúvida.’ Que modéstia, Pedro! Eu vejo uma árvore a arder, uma árvore que vive um drama (o combate do artista com a sua paixão?), e uma árvore jubilante de clorofila primaveril. Lado a lado. Onde o pintor académico teria pintado um faustoso ‘incêndio na Floresta”, tão real que logo vos precipitaria para um extintor de incêndio, e uma não menos faustosa “Floresta na Primavera” numa outra tela, o génio de Pedro juntou dois temas contrários sobre a mesma superfície. Imaginem duas orquestras a tocar simultaneamente a Primavera e o Verão de Vivaldi. Pintor primitivo, concordo. Pintor que não sabe desenhar, de acordo. (Penso no modo como Baudelaire fala do “Pintor da Vida Moderna”: “Desenhava como um bárbaro, como uma criança”...). Ou seja, pintor que sente as forcas primitivas, as da árvore exultando de seiva, e as da árvore em agonia; logo, pintor que sente genuinamente, como uma criança.
Pintor heráclito.
(Entre parêntesis, Pedro sofre deste complexo: Não sei desenhar, não tenho o dom do desenho”. Após ter estudado longamente a sua pintura, proclamei-lhe: “Tu és um pintor; e talvez sejas fundamentalmente pintor, por não seres bom desenhador. Não se pode ter a certeza de que a tua pintura tivesse a mesma força se fosses bom desenhador”. Creio mesmo que a atrofia de um dom - o desenho neste caso - suscitou o desenvolvimento do teu dom de pintor.)

Há um pequeno quadro encantador, jovial: sobre um fundo azul marinho, céu e mar, foram colados frágeis barcos em folhas de ouro. Quanto às estrelas celestes, estas são simbolizadas por nada menos que falsos diamantes, engastados no suporte de alumínio “Este chama-se OURO SOBRE AZUL”

 

(P.S.: este quadro foi-me roubado. Dou alvíssaras a quem souber do seu paradeiro).

 

(Ouro  sobre azul, o que em Português representa o “nec plus ultra”). Propuseram-me a sua compra: Pois bem, eu disse não, não me interessa. Vou vendê-lo por 5 mil ou 50 mil escudos? Não, prefiro ficar com ele. Não tenho necessidade de 50 mil escudos. Se este quadro é de valor como o seu titulo o indica, então que tenha valor de verdade. O que me interessa é descobrir um ourives que me venda... Digamos, uns dez diamantes verdadeiros; vou incrustá-los no lugar dos falsos; então adquire valor. Vale um milhão. Ou dez milhões. Torna-se interessante vendê-lo. O comprador quer qualquer coisa que tenha valor? Que pague! Um milhão. Ou dez milhões. OURO SOBRE AZUL, assim de acordo”.
Na altura, fiquei chocado com estas palavras. Depois meditei a este propósito: um quadro de van Gogh foi vendido por X milhões de dólares. Preço totalmente irreal, que nada tinha que ver com a pintura. O preço está fora do contexto do quadro, numa inflação delirante da cotação. É o preço, por exemplo, de uma ourivesaria inteira. Pedro, que pretende colocar o valor no quadro, os dólares no próprio corpo da pintura e não na abstracção de um título e de uma santificação da arte, adopta um procedimento surrealista, muito menos fantasista do que possa parecer. Nas suas esculturas Picasso não punha carros, César não emprega os emblemas do mundo industrial? Os artífices barrocos do tempo das Descobertas não acumularam nas Igrejas ouro e madeiras preciosas? Porque não colocar na obra a “massa” (sob forma de diamantes), isto é, o valor comercial?

Liberdade de absorver.


Há um quadro feito por um par a dançar, pisado por pés nus, mergulhados na pintura. No lugar do magma tosco que era de esperar, a pintura mostra uma mancha que evoca dois corpos dançando debaixo das folhagens. Por que caminho complicado um tal chapinhanço produziu uma tal pintura, não é menos misterioso do que isto: da dorna onde Os vindimadores espezinham uma pasta viscosa, vai nascer o vinho.

Liberdade de fabricação.

 

 

Há uma pintura feita a Óleo e serrim;

 

Uma pintura na qual foram implantados certos órgãos (pincel, tubo, lençol);

 

 

Uma pintura a óleo, areia e sangue de mosquito

 

 

- "Há que utilizar o que se tem à mão; estava calor, as mosquitos picavam-me por todo o lado: esmaguei-os no óleo, com o meu sangue"; 

Uma pintura esfregada com excrementos, e outras experiências. 

Liberdade técnica.


Há uma pintura que não podia ser mais estereotipada: um vaso de flores.

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 Ora, a impressão que se liberta deste vaso de flores é única. Forte. Há muito tempo que não via um vaso de flores tão expressivo. Como, porquê, não saberia eu examinar a questão. Isso necessitaria um comentário mais amplo. Parece-me, para abreviar, que neste caso Pedro, tal como um mestre hindu que descobrisse em si um lótus ainda fechado, abriu-se ao espírito do vaso de flores, que ele sentiu este ramo no seu peito, os ventrículos escarlates das peónias e a capitosa cabeleira do verde: em resumo, que se transformou em flor, durante a realização deste quadro. Estranhamente, o fruto da flor de lótus - na antiguidade - detinha poderes mágicos: foi pelo seu efeito que os companheiros de Ulisses esqueceram a pátria. Teria Pedro igualmente esquecido a sua pátria, isto é, o seu próprio ser, a sua humanidade, para se transformar em vegetal? Não sei. Mas, em princípio, o vegetal levou bem longe este pintor principiante! O que é certo é que ele compreendeu esta natureza, chamada morta, que se transformou na flor moribunda do vaso donde extraiu a essência de vida e o último esplendor, senão como explicar a carácter dramático deste quadro, que poderia ser apenas um sereno vaso de flores? Que diz Pedro? “Passei por entre vários desesperos, nesta pintura. Houve cinco sessões de trabalho, que duraram vários meses. Ei-la, enfim!”. Oh! Coma se vê, transformar-se num vaso de flores é bem mais difícil que ir colher margaridas e papoilas!

Liberdade de se encarnar. 
DESCER ATÉ AO ÍNTIMO DO TEMA, dizia Paul Klee.

 

 

Há um estranho caligrama castanho, uns sinais que mais parecem vestígios que actos. Pedro explica-me: “Fiz uma pintura; era um borrão, mas que transpirava qualquer coisa: havia neste estrume vida em embrião. Imprimi esta tela ainda fresca sobre uma outra, e destruí o positivo. Eis o resultado. Gosto muito.”
Pergunto a mim mesmo o que pode surgir do negativo de uma obra que voltou ao nada. Pouca coisa, sem dúvida; … pois bem!, é linda. E não é menos verdadeira que uma impressão digital, não é menos grave do que uma mão da Idade das Cavernas gravada numa parede. Marca pictórica.

Liberdade de falhar, de encontrar por falhanço.


Há cem obras interessantes, numerosas apaixonantes e outras tantas espantosas. Paro para me interrogar:

1) Como é possível que um homem tão pouco racional, tão pouco mestre das leis do belo, tão pouco voluntário, de certo modo, possa ser tão PINTOR?
2) Como é que o cérebro de um só homem pode ser tão PLURAL?

Saí da casa de Pedro, entusiasmado, na verdade: tinha encontrado um artista da raça dos pintores plurais.


O INSTINTO?


Depressa fiz objecção ao meu entusiasmo: Os pintores amadores talentosos, (com um certo dom para a diversidade) abundam. O que acontece é que, por não estarem aptos a submeter os seus dons diversos ao rigor de um ESTILO, o seu trabalho peca por disparidade. Esses topa-a-tudo, manipuladores de todos Os géneros, esses quinquilheiros do borrão, o que fazem, na verdade, é apalpar as coisas; pairam sobre a beleza, não descem abaixo da superfície. Eu acho que o Pedro desce, agarra 0 fundo das coisas, mergulha. Dá-se à causa de cada quadro, como se fosse o único, imerge, empenha-se, viaja em direcção às regiões desconhecidas do seu cérebro, investe em direcção aos fundos obscuros, inexplorados das formas. Cada obra é uma aventura independente das outras. Será que esquece o que fez, antes de fazer? Eu jurava que sim. É em Wols que penso neste momento: “A primeira coisa que ponho de parte na minha vida, é a memória”. Esquecer para ser obrigado a inventar. Que cada quadro seja uma reposição a zero da arte, a pesquisa de uma nova origem. A busca de uma infância da arte. Pedro possui, sem o saber, as preocupações de alguns grandes deste século, dos quais Baudelaire era o oráculo: “A criança vê tudo como novidade, está sempre embriagada. (...) O génio é apenas a infância reencontrada tanto quanto se quer (...) uma percepção infantil, isto é, uma percepção aguda, mágica, à força de ingenuidade!” Picasso, Klee, Wols, Dubuffet…
Este desejo de não se repetir, este esquecimento do caminho percorrido, esta ingenuidade, apanágio do médium, pode explicar em parte este dom para a diversidade; o talento de Pedro desenvolve-se e engrandece na renovação constante, e leva-me a pensar que, se Pedro procurasse repetir-se, imitar-se, copiar-se a si próprio, explorar-se, ele arruinar-se-ia.
Entre estes grandes predecessores, vejo apenas um Paul Klee que o iguala em variedade. Ao ler Marcel Marnat: “Klee será a criação, antes mesmo de a imobilizar numa vontade de estilo”, eu era capaz de jurar que é do Pedro que se fala. A ‘vontade de encontrar o seu estilo? É a última das suas preocupações! Aposto que este projecto o faria rir de verdade! Um Paul KIee português, então? Embora aparentados em muitas coisas - variedade das técnicas, liberdade de tom, eclectismo dos temas, puerilidades - aqui acaba-se o parentesco.
Não existe aqui teoria. Não existe aqui virtuosidade do traço. Não existe aquela ciência da linha. Sem projecto. Sim, sem nenhum projecto. Sem sequer o projecto de ser pintor e de se inscrever na história da Pintura, nem mesmo o de tal ou tal pintura:
“Eu não sou capaz de dizer: vou fazer isto. Não... eu nunca sei o que vai sair.”
Então?
As pessoas dizem: “Já se nasce com o dom”.
Eu só sei explicar a arte de Pedro por esta palavra: INSTINTO.
Não tendo recebido educação estética, não sendo descendente de uma rica tradição pictórica, não tendo sido predisposto, é bem necessário que, entre os inúmeros amadores que lançam cores sobre a tela (e os não menos numerosos profissionais poluidores que povoam o país da pintura), é bem necessário, repito, que este homem tenha nas veias e nos nervos O INSTINTO DA PINTURA. E que, à semelhança de todos os instintos, esta energia seja capacidade. 


LOUCURA?


Baptizei Pedro “O Louco”. Uma palavra que fazia furor, há uns anos, era “demente” : o que quer que fosse “demente’ era o máximo. Algo ‘demente” era verdadeiramente surpreendente, estrondoso, transcendente, mirabolante, ... demente! Acerca da pintura de Pedro poderíamos dizer que é “demente”. Nos dois sentidos do termo. Reina aqui um ar de loucura: os “doidos”, diversos e variados, notabilizam-se frequentemente pelas suas magníficas pinturas. O magnífico, indubitável, de certas pinturas, é infelizmente muito limitado e sem seguimento. São as belezas acidentais, como a natureza oferece aos milhares. Belezas casuais, belezas que escaparam ao caos. Pedro o louco, apresenta uma obstinação terrível pela pintura, um querer-pintar que ultrapassa o prazer de pintar, e mostra um talento que tem pouco a ver com a irreflexão. É pintor. A biografia social fez dele um homem de negócios, mas o seu destino é o de pintar. Declaro-o. E esta loucura de pintar, nele, é exortada por uma consciência aguda, escondida, mas real, do que é belo. Há uma palavra que vem frequentemente aos lábios deste artista imoderado. É: HARMONIA.


PRODUÇÃO E CRIAÇÃO


Que dizer desta deslumbrante faculdade de metamorfose? Se o cérebro humano constitui o milagre deste terceiro infinito, infinitamente complexo, é na biologia, mais que na psicologia da arte, que se deveria investigar para sondar o mistério de tão heteróclito artista. Os meus conhecimentos não me permitem ainda tal mergulho. Aos que me dirão: “Um artista tão inconstante, incapaz de estabilizar a sua procura e aprofundar a sua linguagem, foge de si próprio. Dispersa-se porque quer perder-se, vagueia ao acaso porque quer semear-se, toca em tudo, porque não se encontrou”; vou fazer a seguinte pergunta: “E se este delito de fuga, que imputam a Pedro, fosse, na verdade, a descoberta de um território virgem, a exploração deste infinitamente complexo do qual se honra o cérebro humano? O génio humano está contido no infinito das ligações entre os neurónios, esses milhares de famosas sinapses por onde passam os influxos nervosos; se se considerar uma OBRA DE ARTE como o resultado dum certo número de ligações de neurónios (alguns milhares), não será uma forma de génio a faculdade de modificar radicalmente essa combinação sináptica a fim de realizar uma outra OBRA DE ARTE completamente nova e completamente imprevisível? Um espírito humano apto a dar livre curso à plasticidade das conexões de neurónios, que pode activar um tecido associativo novo para cada pintura, por exemplo, é para mim um inteligente usufrutuário do génio natural do cérebro. 
Serve-se com toda a inocência das possibilidades presentes na sua caixa craniana como uma criança associa os objectos, os Legos, as bugigangas de toda a espécie, espalhadas pelo seu quarto para fazer uma construção nunca feita e que nunca mais será feita. Miolos comparáveis a um prodigioso caleidoscópio, de inumeráveis figuras’. Esta interpretação é apenas uma entre outras que possam vir a surgir, é claro.

Por conseguinte, em casa de Pedro, o nosso pintor de bigode e longas mãos, só há OBRAS ÚNICAS. Sobre este assunto, Pedro diz ingenuamente: “Não gosto de me repetir”, ou então: “Saiu uma vez, não me repito”. Que quer dizer esta recusa categórica da repetição? Não será apenas uma posição extrema numa época que consagra um culto ao diferente, ao novo? Não será apenas uma blasfémia contra uma regra estabelecida (a unidade de estilo)? Ignoro, para dizer a verdade; mas há aqui qualquer coisa que me seduz, qualquer coisa que atinge o mais secreto da criação. Vivemos numa sociedade industrial de produção, ou seja, de reprodução. A Renault lança X Clio por ano, todos iguais, e Bernard Buffet (o nome é duma banalidade trivial) um certo número de “Buffet” por ano, todos mais ou menos idênticos. A maior parte dos artistas de hoje - mesmo os melhores - integraram perfeitamente em si próprios tal lógica da produção, logo, de reprodução. Tornaram-se pequenos produtores do seu talento:
Uma vez encontrada a Fórmula, e o cliente contente, produz-se. Pode durar uma vida inteira. A rentabilidade está assegurada. Fabrica-se exactamente a mesma coisa, repete-se incansavelmente, as difusões estão garantidas. Parabéns a estes copiadores infatigáveis da sua imagem de marca, presunçosos imitadores de si próprios, que, como protozoários, se reproduzem por simples divisão deles mesmos, parabéns a estes palhaços repetindo o mesmo número, bravo pelas suas pinturas decalcadas nas suas pinturas precedentes! Ah! como o homem é um hábil papagaio! Esta sociedade de produção não tem objectivo. Fabrica-se, mas não se sabe porquê. No domínio da arte, que é (não esqueçamos uma evidência) a da criação, logo, da invenção, esta aberração, salta ainda mais aos olhos. Na maior parte das exposições, os quadros não se distinguem mais uns dos outros que as máquinas de lavar a louca numa loja de electrodomésticos: entre uma Philips e uma Faure, só se vê o branco… 

Neste contexto de artistas pequenos produtores, a existência de um artista anti-repetição, anti-reprodução, é realmente subversiva. E não apenas subversiva, mas mais ainda, vejo nela restaurada A HONRA DA PINTURA como acto de criação.


ESQUIZOFRENIA?


A psiquiatria terá muito proveito a tirar de um caso como o do Pedro. E um sintoma de esquizofrenia será imediatamente diagnosticado. O que é a esquizofrenia? Uma psicose: o homem não consegue adaptar-se ao real. Resiste por marasmo, inércia em relação ao outro, refugia-se em si mesmo, terrores de desdobramento, e sofre de várias perturbações. A etimologia ajuda-nos a compreender melhor a sua significação: do grego skhizein, fender, rachar, e phrên, phrênos, mente, alma, significa que este ser tem a alma rachada. Ah! Sobre o altar da psique, qual de nós não será sacrificado por psicose? E a partir daí, qual dos nossos grandes artistas não é um magnifico espécime de louco? Sem contradizer o discurso da psiquiatria, não encontro nela nenhuma resposta séria: nem no talento do Pedro, nem na sua criação fendida em mil ramificações. A esquizofrenia não explica melhor o Pedro do que explica Paul KIee. E se fosse, em vez disso, a realidade de hoje, este fim de século que não se adapta ao real do qual já perdeu as chaves, se fosse essa a coisa propriamente esquizofrénica, da qual Pedro traduz o caos? Retornemos, com Kandinsky:

“1º Todo o artista, como criador, deve exprimir o que for próprio da sua pessoa (Elemento da personalidade).

2º Todo o artista, como filho da sua época, deve exprimir o que é próprio dessa época (Elemento de estilo no seu valor interior, composto pela linguagem da época, e pela linguagem do povo, durante o tempo que este existir como nação).

3º Todo o artista, como servidor da arte, deve exprimir o que, geralmente, é próprio da arte (Elemento de arte pura e eterna que se encontra em todos os seres humanos, em todos os povos e em todos os tempos, que aparece na obra de todos os artistas, de todas as nações e de todas as épocas e que não obedece, como elemento essencial da arte, a nenhuma lei de espaço nem de tempo).”

Eu acho que Pedro afirma leis constantes de beleza através da sua pintura (Aceitarei qualquer protesto, porque não sou crítico de arte, mas lutarei para convencer). Ele exprime o seu tempo através da sua pintura, este tempo de todos os tempos, muito mais, em verdade, do que a maioria dos pintores, principalmente desses inúmeros aguarelistas portugueses que persistem em produzir hinos húmidos, como se os rios não estivessem poluídos de venenos químicos, e como se os petroleiros gigantes não partilhassem as águas com as barquetas - este tempo onde coabitam peixes locais e submarinos atómicos, este tempo da superabundância das imagens, dos estilos, das tendências, este tempo da confusão, da proliferação indiscriminada dos fenómenos.
Isto parece-me evidente.
E, na sua pintura, ele exprime o seu ser.


O ARTISTA MÚLTIPLO


O seu ser - e nisso talvez ele esteja mais perto do homem de hoje e mais longe do homem de sempre - o seu ser, não o seu ‘eu”, mas precisamente o “eu” múltiplo que o habita. Em nós, quantos outros vivem em estado larval de pessoas que gostariam de crescer, e que nós deixamos vegetar, quantas palavras possíveis açaimamos, quantos actores que gostariam de dizer o seu texto e que nós sequestramos na “caixa do ponto”, quantos outros se oprimem em nós? Parece-me que o homem de hoje, mais do que nunca, sente nele a presença dos hóspedes da sua alma e é só mesquinhamente que lhes oferece a sua hospitalidade. Quantas vezes deixamos de fazer aquilo que temos vontade de fazer, quantas vezes tal gesto é repelido, quantas palavras, e quantas obras, estagnam no nosso tão fértil húmus? Porque não encontramos nós a força ou a audácia de fazer aquilo que alguns ousam? Enfim, para mim, o Pedro pertence a classe daqueles que ousam abrir a “caixa do ponto’ aos seus hóspedes. Vem-me de repente à memória que esta destruição do mito da unidade da pessoa, iniciada poeticamente por Rimbaud, foi - caso estranho - um português quem mais arriscou com tais consequências: Fernando Pessoa, o poeta em quatro poetas: “Cada um de nós é múltiplo em si, sendo um só, é uma proliferação de si mesmo”. Nestas duas frases, as quais desejo juntar o luzeiro de Baudelaire: “Eu sou todos; todos sou eu”, vejo um caminho, entre os mais férteis abertos na arte moderna - logo, no pensamento: de braço dado, estas frases abrem caminho a seguinte descoberta: O HOMEM É MÚLTIPLO. Mas vejo que poucos, no fundo, puseram em prática (na arte ou na vida) esta tripla descoberta: o eu não é uno e indivisível (a dilacerante pluralidade de nós mesmos); outros abundaram em mim; outrem pulula em mim e eu pululo em outrem: e, sobretudo, 0 facto de sermos, mais ainda que indivíduos, provetas do VIVO, alambiques onde a vida se derrama e se destila, tubos de ensaio do espírito, é essa talvez a consequência mais perturbante. O ser humano, ávido de unidade, tolera ou compreende mal os que tentam esta MULTIPLICAÇÃO DA PERSONALIDADE. 

Inconcebível. Era inconcebível em 1930 que as obras de quatro escritores - quatro obras coerentes! - fossem a produção de um só homem.
A descoberta do baú de Pessoa, Fernando, onde repousavam tais obras, tornou concebível o inconcebível e, nesse momento, o impossível deixou de ser português.
É inconcebível, ainda hoje, que de um só homem, emanem duas, três ou trinta obras diferentes. Ora esta realidade existe, existirá cada vez mais, a meu ver, e talvez que um dia se diga: aqueles que de maneira insensata viveram o seu cérebro (o seu ser) como um múltiplo eu, tinham razão. Michaux será cada vez mais actual.

Pedro, este pintor sem pai, sem professor, terá um irmão mais velho na arte?

“Tudo sentir de todas as maneiras,
Tudo viver de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todas as maneiras possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si a humanidade de todos Os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.”

Fernando Pessoa.


Pessoa era um génio. Ele foi o poeta que se multiplicou. No caso do Pedro, é pouco dizer que há multiplicação da personalidade. Melhor seria falar de explosão. Inútil insistir: esta explosão é dolorosa. A magreza de Pedro confirma-o. E quão fecunda! Insistamos nisso: cada possibilidade do eu, sobrecarregada algures no momento desta explosão, vá germinar talvez. Comparemos então a personalidade, na sua cintilante diversidade, a um campo imenso, cujos limites são indefinidos, pois cada parcela encarna um eu potencial. Assim, cada pintura representa a exploração de uma parcela, a sua colheita, e a sua consumpção. O artista é livre de fazer crescer bem alto ou no exterior as suas culturas, livre de utilizar adubos químicos ou esterco de vaca, livre de praticar a mono ou a pluricultura... Livre.


LIBERDADE


A arte de hoje, ninguém a compreende muito bem. O que é bom, o que é mau? Raros são aqueles que são capazes de julgar do valor de tal ou tal obra. Recai-se sempre no ilusório e no necessário: “Gosto, não gosto”. Há pouco tempo, verifiquei, folheando uma revista de arte contemporânea: “Foi tudo feito e tudo se pode fazer. O artista de outrora, aureolado da sua gloria, o artista exemplar, o Mestre, que restitui as forças do universo à disciplina de um estilo eternamente reconhecível, o pintor, em suma, tem ainda um significado? Não se poderia dizer que, hoje, só o acto conta, a produção, a agitação, o ímpeto das mãos? Abram esta revista: miríades de imagens, artistas de todo o lado, de todos os estilos, de todas as linguagens, Babel de formas e fórmulas! Que interessa a GRANDE PINTURA, pensei, que interessa o GRANDE PINTOR, contanto que se perpetue a GESTA DA PINTURA! Exaltava-me: “Já não há Pintura a fazer; então é preciso fazer TODAS AS PINTURAS! Não é espantoso, que pouco depois, eu encontre este pintor de todas as pinturas?”
A arte de hoje está sob “overdose”. Esta “overdose” é a da liberdade. Livre, pois - aquele que pinta - de fazer o que quer, de exprimir o que sente, mesmo excessivamente: muitos fazem seja a que for; retorcem a seu eu urinoso como uma serapilheira e pintam com esse suco. Poucos ousam verdadeiramente expor-se a esta liberdade. É preciso não esquecer que a liberdade de realizar o que se é e o mundo tal como se sente - empregando os meios necessários - é um risco? Quanto a mim, Pedro o Louco concretiza no seu trabalho esta aventura de todos as possíveis. Neste caso, todos os “eu” possíveis. “Ser “eu” não tem dimensão”, escrevia Pessoa.
Esta atitude desmedida vivida e realizada por Pedro, a pintor português, perturba-me, provoca-me uma violenta emoção, tanto mais que sinto em mim, desde há muito tempo, esta mesma iniciativa.

Simon, Outono 1990.